quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O Deus das pequenas coisas

A razão que me levou à compra deste livro, foi um acaso. Vivendo uma certa crise existencial, visitei uma das muitas feiras do livro que vou encontrando pela cidade. Entrei um pouco desalentada. Estava a precisar de ler, devorar um livro que me prendesse de tal modo, que não fosse capaz de me separar dele. Estava prestes a sair quando olhei a capa de um e li: «O Deus das pequenas coisas»...gostei do título, li a contracapa. Nunca tinha ouvido falar da autora. Comprei o livro e digo, em boa hora.
Já o reli, porque a primeira leitura foi mais rápida. Isso geralmente acontece-me dada a "voracidade" com que faço a primeira leitura, geralmente é na segunda leitura,  que me deleito, é na segunda que vibro com a escrita, fixo personagens e por vezes consigo mesmo "entrar" no enredo, colocar-me no lugar de um personagem que logo na primeira leitura, me tocou sobremaneira. Porque as palavras continuam a ter uma importância imensa para mim. 
Confesso que de início o achei um pouco confuso. São descritas tantas circunstâncias e personagens que me vi obrigada a voltar atrás, mais de uma vez. A leitura não é fácil, mas mal entramos no enredo, vamos embalados e não conseguimos largar o livro.
Além de ter adorado, foi uma circunstância como matéria para uma cadeira de mestrado. Já o recomendei a vários colegas de curso porque acredito que seja um bom exemplo das matérias que estudamos. Para além de Antropologia, este livro é digno de ser estudado pela sua forma de escrita, pelas imensas mensagens que contêm nas entrelinhas, coisas que ficam no ar, e que tem tudo a ver com a filosofia, a psicologia., as relações humanas e de família, o amor, a inveja, etc. Mas também faz crítica política e social.

A autora, a obra e a Índia
Arundhati Roy é uma escritora indiana e «O Deus das pequenas coisas», o seu primeiro livro. A escritora nasceu em Kerala, na Índia em 1961. É licenciada em Arquitectura, no entanto desde muito cedo que escreve guiões para cinema. «O Deus das pequenas coisas» foi escrito em 1997 e recebeu logo nesse ano,  o prémio Booker Prize.
Segundo Arundhati Roy, o prémio é sobre o seu passado.  A escritora diz que não sabe se voltará a escrever. “Estou à espera que o barulho na minha cabeça pare” , disse Roy em diferentes entrevistas.
Mantêm-se no entanto, uma mulher políticamente muito activa. Dedicada à luta pelas causas políticas e sociais em que sempre se empenhou, escreve artigos de cariz político e social. As mulheres e o regime de castas, a proliferação da energia nuclear na Índia, a globalização, a guerra no Iraque, o 11 de Setembro, e a crescente tensão com o Paquistão, são algumas das causas a que se dedica e se dedicou. Arundhati Roy não quer que separem a sua faceta de escritora, da de activista política.
A escritora refere que não se pode esquecer circunstâncias que marcaram a vida da Índia, a invasão muçulmana, a colonização britânica mas também a era de alta tecnologia, que a Índia vive no presente.
Há alguma ambiguidade na escrita inicial de Arundhati Roy, no que toca à descrição do que é a Índia. Mostra-a ora independente ora sob forte influência colonial. A autora usa um discurso absolutamente contra-hegemónico e é muito agressiva nas suas críticas políticas, o que contrasta em absoluto com a sua aparência física já que tem um olhar absolutamente meigo e uma aparência frágil, é muito bonita e feminina.
Para fazer este trabalho fiz uma pesquisa bastante exaustiva e li muitas entrevistas, que deu em muitas partes do mundo. Sentimos que há uma amargura no passado, que julgo esteja ligado ao seu livro, que creio ser em boa parte, autobiográfico, por coincidência de datas, ou aproximação, creio que Arundhati  poderá ser Rahel.
A escrita de Arundhati Roy é muito simbólica, enigmática, e a escritora tem particular cuidado em mostrar as desigualdades sociais. Uma sociedade onde a civilização europeia continua a ser vista como modelo ideal e modelo a ser seguido. Sophie Moll será a personificação dessa cultura europeia.


O livro
O livro é um romance sobre uma família indiana em dois momentos distintos:
A actualidade da narração, e o da infância dos gémeos Esthapen, ou Estha e Rahel, gémeos dizigótimos, filhos de Ammu.
São eles que nos relatam a história, e esse relato é feito do fim para o início, ou seja ao contrário. Os acontecimentos na visão das crianças, marcam a narrativa de forma particular, mesmo quando a acção não os inclui.
A história foca a vida de uma família, uma vida cheia de acontecimentos trágicos, com uma tensão extrema e expõe de forma subtil, a vida social na Índia, nomeadamente no que toca o sistema de castas.
Tomamos conhecimento desta Índia com muitas e violentas contradições, em que a tradição e a modernidade são elementos de uma luta sem tréguas. Através do olhar de Arundhati Roy, tomamos conhecimento da condição da mulher na Índia, através das várias gerações da família.
“Tudo começou realmente na época em que a Leis do Amor foram feitas. As leis que estipulavam que devia ser amado, e como, equando.” (Isto refere-se a Sophie Moll, amada desde sempre, e aos gémeos, sem amor).
No primeiro plano, um enredo simples, que começa nos anos 60 do século XX, com a trajectória de uma família tradicional indiana em confronto com as sequelas da colonização inglesa na Índia e  do marxismo,  que são os causadores  das crises de identidade cultural e nacional.  A difícil identidade da Índia e mistura de elementos históricos com práticas seculares, levam a que a miséria seja devida ao problema da pobreza e das castas, mas também às muitas línguas faladas e  muitas religiões. Tal como refere a autora no seu livro, a diversidade feita de violentos contrastes com o islamismo e o hinduísmo em coexistência.
No segundo plano do livro, desenrola-se o enredo poético. A organização da história a sequência da mesma, o espaço, o tempo, a estrutura e estilo, o narrador bem como as personagens, tudo está inserido num universo caótico. As memórias, os sentidos, a fantasia, vão entrando na narrativa, como que fazendo uma contra-narrativa onde ela brinca com a linguagem. A contra-narrativa que refiro atrás, concretiza-se no facto de o livro ser sobre a natureza humana e sobre a Índia. A realidade da Índia e da sua História, foi misturada com a realidade interior dos gémeos Estha e Rahel, pela escritora.
Arundhati Roy que é arquitecta de formação, constrói uma Índia através dos sabores, os cheiros, as cores, sons e tradições, crenças e rituais, onde o Oriente e O Ocidente se fundem. A história vai sendo narrada intercalando passado e presente narrativo dos personagens, em que as situações vão sendo reveladas ao leitor. A história gira em torno de uma tragédia que modificou radicalmente a vida desta família de cristãos indianos.
Os gémeos dizigóticos, têm entre si, uma ligação muito fora do comum, como se fossem um só. Eles vivem com a mãe, Ammu, esta divorciara-se do marido, um hindu e viu-se obrigada a retornar à casa dos pais, que têm uma fábrica de pickles e conservas de fruta. Ammu desesperava porque não tinha um dote para ter uma boa proposta de casamento. Ela vivia  infeliz, a mãe não lhe dava amor e o pai estava  sempre mal humorado. Por isso acabou  por casar sem amor.
A vida de Ammu não era fácil junto da mãe, Mamachi e do pai Papachi. Também  o irmão, Chacko,  se  divorciara de uma cidadã inglesa e regressou à Índia.  Também vivia na casa, uma tia-avó, Baby-Kochama, solteirona e muito invejosa de quem era amado. Ammu será muito amada pelos filhos e por apenas uma vez na vida, por um homem, Velutha, ela perderá tanto esse amor, como os filhos.
Baby Kochama não gostava dos gémeos e demonstrava-o amiúde. Os gémeos eram constantemente vigiados pela tia-avó. Para ela os gémeos eram crianças “híbridas”, fruto do relacionamento da mãe cristã e do pai hindu. A cada instante recordava às crianças que estas viviam de favor em casa dos avós, em Ayememem. No entanto e apesar desta perseguição por parte de Baby Kochama, as crianças conseguiam divertir-se e serem “felizes”.
A vida destas crianças, vai alterar-se devido à chegada de Sophie Moll, prima dos gémeas porque era filha do tio  Chacko e da sua  ex mulher. A menina tinha nove anos de idade e vivia na Inglaterra, assim ela era a personificação de tudo o que era de mais querido à sociedade. Como a mãe perdera o segundo marido e padrasto de Sophie Moll, Chacko tinha-a convidado a para ir até à Índia.  Sophie Moll será a protagonista de uma tragédia e desencadeará uma outra, ainda mais grave.
A autora criou um universo híbrido, no que respeita à forma e ao conteúdo do livro, hibridez essa, entre o Oriente e o Ocidente. As influências do “império” ou metrópole da Índia, a Inglaterra, em contraste com as tradições milenares, as religiões e o marxismo. A estruturação caótica da própria sociedade em confronto com a organização social britânica.
Em “O Deus das pequenas coisas” a história é acima de tudo a de Ammu e de seus filhos Estha e Rahel, nascidos em 1962, que irão viver num mundo muito próprio, entre a vida encantada da infância e os segredos do mundo, já adultos. Ammu era maltratada e usada pelo marido, e fora obrigada a fugir e pedir o divórcio.
O livro foca ainda outros assuntos muito pertinentes, o flagelo da pedofilia na Índia, os maus tratos às mulheres duplamente estigmatizadas e o problema do incesto. O problema das religiões e das muitas línguas. A marginalização dos intocáveis ( frutos do sistema de castas que apesar de proibido continua a vigorar). Intocáveis, todos os que têm as tarefas mais abjectas ou “sujas” e não podem contactar com os tocáveis, para não os contaminar. O livro foca ainda o problema do cristianismo e do marxismo, que tinham chegado à Índia como novidades europeias e que “ameaçavam” o sistema tradicional.
O livro é muito descritivo, e por vezes um pouco enfadonho devido ao excesso de descriçã. No entanto tem cenas hilariantes, como a da espera de Sophie Moll e de sua mãe, no aeroporto.
Quando Ammu se separa do marido e regressa a casa dos pais, Arundhati Roy foca uma  das maiores “feridas” da sociedade indiana, a questão do género.
Ammu, estava divorciada, sozinha e com duas crianças,  subjugada à estrutura social e familiar, que levaram a que fosse excluída e não recebesse qualquer amor.  Ela não pertencia a lado nenhum. Mas apesar disso, o amor está por todo o livro como algo impossível. Ele paira no livro como objecto de desejo, com o culminar da felicidade, nas diferentes vertentes desse amor que Arundhati nos mostra.  O de Baby Kochama, uma obsessão pelo Padre Mullingham, um amor platónico, já que ele não lhe corresponde e que ficará para toda a vida. O de Mammachi que amou o marido mas toda a vida foi violentada por ele. O dos gémeos entre si, um amor avassalador e o destes pela mãe. Depois o amor de Velutha e de Ammu, um pelo outro. Dois seres mais puros, quase como as crianças, que se deixaram envolver por algo mágico, mas que terá o preço mais alto. Arundhati Roy foca o fardo de ser-se mulher. Mammachi e Baby, resignadas. Ammu inconformada, que pagará por essa inconformidade.
Mammachi era a matriarca da família, quase cega (possivelmente devido a diabetes),  que durante toda a vida sofreu abusos físicos por parte do marido, um entomologista famoso, anglófilo até à medula, e que era considerado um gentleman por toda a sociedade local, excepto dentro da sua própria casa, pela família, a quem maltratava.
Quando Pappachi se reformou, Mammachi começou a fazer conservas para vender, e com sucesso. Criou a fábrica de pickles e conservas. Mammachi era 17 anos mais nova do que o marido e o facto de este se ter reformado, levaram a que Pappachi a sovasse diariamente. Estas agressões feitas com vasos de latão, só cessaram quando Chacko, que tinha regressado de Inglaterra, viu o pai a bater na mãe e o proibiu de ter tais atitudes para com a mãe. Pappachi não voltou a bater-lhe, mas também não voltou a dirigir-lhe a palavra, até ao dia em que morreu.
Baby era uma mulher azeda. Ela nunca foi amada por ninguém. Quando era jovem tinha-se apaixonado por um irlandês, o padre Mulligham, que estava em serviço na Índia. Baby converteu-se ao catolicismo, na esperança de receber o amor dele. Ele também terá sido tocado pela amor, mas como era católico, acabou por ir embora. Baby estudou paisagismo nos Estados Unidos, e regressou à Índia, solteira e amarga. Assim ficou para sempre. Tinha profunda inveja de Ammu que era muito bonita e que já tinha sido amada pelo marido e pelos filhos e será  depois por Veluhta.
A história da vida de Ammu, é muito triste, ela não concluiu os estudos e desistiu da universidade. A vida em casa era muito amarga. A mãe permanentemente triste, nós sabemos porquê, e o pai sempre mal-humorado. Um verão pediu para ir visitar uma prima a Calcutá e lá conheceu o que viria a ser o pai dos gémeos. Mais tarde descobre que o marido era alcoólico e um preguiçoso. Queria que ela fizesse favores sexuais ao gerente da fazenda de chá onde trabalhava. Este achava-a muito bonita. Em troca propunha-lhe o pagamento da clínica para tratar o alcoolismo do marido de Ammu, se esta se tornasse sua amante. Nessa ocasião Ammu já tinha os gémeos. Ela voltou para casa dos pais. O pai, um anglófilo até à medula, como gostava de ser conhecido, não acreditou que um inglês pudesse ter querido a filha Ammu como sua amante e disse que esta tinha mentido.
A partir dessa altura Ammu foi posta de lado pela família. Duplamente estigmatizada. Não tinha ninguém e era divorciada.
Mas ela e Velutha descobriram-se e amaram-se. Como eram de condição social diferente, o futuro só podia trazer tragédia.
Mammachi tinha explicado aos gémeos que antigamente os paravans, casta a que pertencia Velutha, gatinhavam para trás,  para sair de um local e passavam uma vassoura, para que as outras pessoas não pudessem tocar  nem mesmo nas suas pegadas. Mas disse-lhes que esse tempo terminara.
Velutha era o marceneiro e empregado na fábrica de pickles. Era o melhor empregado, mas Mammachi pagava-lhe mais do a um paravan, mas menos do que a um tocável. Quando eles julgaram ter visto Veluhta num desfile dos marxistas, Baby Kochama disse que poderiam vir a ter problemas com os empregados da fábrica,  por reinvidicações sindicais, e começou a implicar com ele . Mas para o camarada Pillai, a possibilidade de um intocável, pertencer ao partido marxista, era um grande problema. Isso Baby Kochama não sabia.
Um dia Chacko vai confirmar com a ex-mulher os bilhetes de regresso a Inglaterra, quando o pai de Veluhta que fora também ele empregado durante toda a vida, da família de Pappachi, imbuído num espírito de gratidão, denunciou o amor do filho Velutha e de Ammu. Mammachi ficou transtornada e muito enfurecida e Baby quis “vingança”. Mammachi permitia as “necessidades masculinas “ de Chacko, mas pôs toda a sua fúria contra a filha, Ammu. As diferenças de género mais uma vez a serem marcadas.
As duas trancam Ammu no quarto e ambas esperam por Chacko, para saberem o que fazer. No entretanto, Mammachi chamou Velutha e despediu-o, depois de lhe ter dito, tudo o que queria.
Por sua vez os gémeos decidem fugir e levam Sophie Moll, que os quis acompanhar. Eles estavam num barco e iam atravessar para a ilha onde existia uma cabana que Velutha arranjara, e onde eles costumavam brincar.
Os gémeos aprenderam a amar quem os amava. Velutha, dava-lhes carinho e atenção, apesar de ser um intocável. Foi este amor que Velutha teve pelos filhos de Ammu que fez com que esta se apaixonasse por ele, eles amavam-se no bosque onde existia a casa de brincadeiras. Também as crianças amavam Velutha. E foi nesses momentos que as crianças foram felizes.
Ammu é duplamente estigmatizada. Divorciada e apaixonada por um intocável. Esta paixão colocou, segundo a tradição indiana, a imagem da família em causa, perante a sociedade. Arundhati Roy utiliza uma subtileza incrível, ela fala de Chako, o irmão de Ammu, também ele divorciado, mas como homem, não é estigmatizado. A escritora não fala directamente desse pormenor, mas leva-nos a pensar nele.
Ninguém sabia que Sophie Moll não sabia nadar e a casa abandonada ficava numa ilha. Uma espécie de refúgio para onde Estaphen e Rahel costumavam fugir para brincar. O barco em que seguiam virou-se e os gémeos nadaram até à ilha. No entanto, Sophie Moll desaparece. Este acidente virá a ter enorme repercussão na vida das crianças, já que as suas vidas se transformam numa verdadeira tragédia. 
Baby Kochama, para “limpar” a honra da família, inventa uma história e obriga Estha, depois de muito pressionado, a corroborar essa história. Velutha é acusado de tentativa de violação da menina morta e do rapto dos gémeos.
As pequenas coisas vão sendo descritas pela autora até ao ínfimo pormenor, tendo a intenção de prolongar esses momentos preciosos das pequenas coisas, que são proibidas, porque o deus das pequenas coisas é Velutha. Aquele que trazia felicidade e amor. São essas pequenas coisas, a esperança, o amor, a loucura e a alegria.
Arundhati Roy utiliza a linguagem de forma primorosa que vai dando intensidade ao texto. Os adjectivos criam personificações e metáforas. “Os cotovelos da noite, repousando na água, observam” ou “ o bambu amarelo, chorou”.  Utiliza um sem número de presságios, pelo que sabemos que há uma tragédia para acontecer. Somos levados a um crescendo de angústia, que nos leva por vezes a ter de parar na leitura.
As histórias de amor são na generalidade tristes. Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Helena e Páris. Eros e Psiché, Pedro e Inês. Ou mesmo do amor de dois homens por uma mesma mulher, Agamemnon e Briseida, a princesa troiana, por quem Aquiles também se enamorara.
Também a de Velutha e Ammu, estava condenada pela sociedade e pela família.   Ammu foi  expulsa da casa da família e separada dos filhos. É obrigada a devolver o filho ao pai que entretanto voltara a casar e estava melhor do alcoolismo. Rahel ficará com a avó. Ammu terá de procurar emprego noutra cidade. Hospeda-se numa pensão miserável e devido a todos os contratempos e tragédias que sofreu, tem um ataque de asma, que a mata.
Mamachi que toda a vida sofre da violência do marido e esconde as cicatrizes desses maus tratos, também ela estigmatizada, mas suportava o abuso do marido.
A história da malévola Baby Kochama, eternamente apaixonada pelo Padre Mullingham e que vai ser a causadora de parte da tragédia. Mas também ela, apesar de tudo, suportava o desamor na sua vida.
A narrativa é feito ao contrário, como já referi. Arundhati Roy apresenta inicialmente, os personagens e no segundo capítulo é o final da história, quando Rahel, depois de ter sido separada da família, anos mais tarde, visita Estha, seu irmão gémeo.
E este reencontro será trágico, dado que os irmãos se amam  muito para além da consanguinidade, de uma tal forma que fazem amor, mesmo sabendo que cometem incesto.
O livro é uma grande história de amor, com muitas peripécias e tragédias à mistura. Onde só se falam as pequenas coisas porque as grandes coisa ficam sempre por dizer. A Mammachi espancada mas que amava o marido, o tio que não consegue esquecer o seu amor inglês e no âmago da história está o amor de Ammu e Velutha, um intocável. E principalmente o amor dos gémeos um pelo outro.
Ao lermos o livro temos a sensação que Arundhati Roy, a cada frase e capítulo que escreve, vai dando uma pincelada num quadro, e o quadro vai sendo pintado pelas perspectivas de duas crianças gémeas de sexo oposto.
Os últimos capítulos do livro são muito mais violentos do que os primeiros, e parece que há uma série de memórias reprimidas no modo como a escritora se exprime. E essas memórias vão-nos mantendo alerta e por vezes explodem como no caso do incesto ou do abuso que Estha sofre no cinema por parte do empregado do bar, o homem laranjada limonada, como lhe chamavam as crianças. Ou na morte brutal e absurda de Velutha, e depois de Ammu, como filha divorciada que não tinha lugar em parte nenhuma muito menos depois de ter amado um intocável. Ammu morre nua, apenas com verniz das unhas, vítima de uma crise de asma. O retrato da absoluta solidão. A solidão na morte, como se nenhum deles merecesse que chorassem por eles, tal a sua condição de “impureza social”...
Há diversos episódios marcantes, como quando vão ao cinema, ver “Musica no coração”, a história da família Von Trapp, as crianças pensem naquela crianças como sendo limpas e brancas, mais uma vez uma chamada para o problema de castas  palavra que quer dizer cor, e quanto mais escuras as pessoas forem, mais baixa  a sua casta. Ou até sem casta, como os intocáveis. O facto de Estha ter sido molestado pelo homem laranjada limonada, passará à mudez, será “ a gota calada num mar de ruído”.
O episódio do aeroporto na chegada de Sophie Moll e Margareth, com as crianças em birra, a formatação destas e o atropelo dos adultos, é uma descrição que nos dá a sensação de “assistirmos” ao episódio. Depois do corpo de Sophie ser descoberto, afogado, a quem os “peixes comeram os olhos”, Velutha é acusado da morte da menina e de rapto dos gémeos. Terá uma morte brutal, como se não fosse gente mas um qualquer fardo onde os guardas espancam, como para se vingarem do ultraje de um intocável. É um dos momentos mais dramáticos do livro.
O livro retrata ainda, a meu ver, um amor incrível entre mãe e filhos, a crueza e solidão da separação. A autora usa os saltos cronológicos, por vezes para nos baralhar, é bem conseguido porque ela vai buscar as “pontas soltas” que ficaram suspensas. E há outras “coisas” onde pegar e discutir, que são também ainda hoje, mesmo na sociedade ocidental mais evoluída e moderna, assuntos tabus.
No início do livro, que é o fim da história, Rahel agora mulher formada, regressa a casa da avó, vinte e três anos depois da tragédia que matou a mãe e o grande amigo Velutha. Também ela está divorciada. Volta para ver Estha, que tinha sido “des-devolvido” pelo pai, porque tinha ido trabalhar para a Austrália. Mas Rahel vai também para encontrar o irmão que deixara de falar e se tornara silencioso desde a época da tragédia. Estha perdera a mãe que o amava duplamente, como pai e mãe, o amigo Velutha, tinha sido molestado no cinema, e tinha perdido o amor de todos. Rahel dá-se conta que não fala de “nós”, quando pensa no irmão e nela própria. Ela substitui o pronome por “eles”, é como se estivesse fora da narrativa que faz com que ela e o irmão, fossem assuntos presos no passado. Já não são crianças, já têm uma idade “morrível”. E este facto parece como outros, por exemplo o súbito amor de Ammu por Velutha, nos capítulos anteriores, e que veio a originar parte da tragédia, como algo um pouco “fora de contexto” na narrativa.
Arundhati Roy retrata as personagens que cometem injustiças e praticam violência, mas a quem são dadas “razões” na vida pessoal, para os “explicar” essa violência.
A autora foca de forma magistral, a opressão do género feminino, mas também a estratificação social em castas, e ainda a banalização da cultura indiana quando comparada com a do “império britânico”. Esse sentimento de “subalternidade” é-nos mostrada pela voz de Chacko, quando se refere que os sobrinhos são anglófilos.
A chegada de Rahel a Kerala,  é feita debaixo de uma chuva torrencial, em plena monção de Junho, como se fossem as suas próprias lágrimas pelas tragédias do passado e pelo peso da culpa que levou consigo, particularmente pela morte da que ela chamava de “Amada desde o Principio”, a prima Sophie Moll, que tinha sido amada por todos, até por Deus e eles, Ammu, Estha, Rahel e Velutha, nunca foram assim amados.
A descrição da chegada de Rahel com a vegetação a enroscar-se nas paredes da casa e o velho Plymouth azul celeste de barbatanas cromadas com Baby Kochama ainda lá dentro. Rahel entra em casa, uma casa vazia, com uma varanda vazia...regressa para viver as memórias da mãe e para encontrar o irmão que não fala desde as tragédias.
Afinal o que é o deus da pequenas coisas? Como explica a autora numa entrevista, “ o deus das pequenas coisas é a forma como as crianças vêem as coisas, a vida dos insectos, os peixes ou as estrelas, é um não aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos”.
Velutha era o deus das pequenas coisas, aquelas que trazem aconchego, felicidade, alegria. Quando Ammu estava com Velutha e com as crianças, eles falavam das pequenas coisas, as grandes, essas ficavam sempre por dizer.

PS: recomendo vivamente este livro a quem quer saber mais sobre o mundo que nos rodeia, sobre o que podem ser as estigmatizações sociais e o que pode ser o verdadeiro amor, que nem sempre vence no final da história.

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