sábado, 13 de outubro de 2012

"De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,

Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;

É astro que norteia a vela errante,

Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;

Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,

Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou"

William Shakespeare



sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Para Ti




Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto

segunda-feira, 28 de maio de 2012


Acabei de ler este texto de Marta Medeiros que sigo e leio, nas diferentes facetas em que escreve. E coloco-o aqui, porque ele traduz exactamente o que penso.

OS RICOS-POBRES

Anos atrás escrevi sobre um apresentador de televisão que ganhava um milhão de reais por mês e que em entrevista vangloriava-se de nunca ter lido um livro na vida. Classifiquei-o imediatamente como uma pessoa pobre.
Agora leio uma declaração do publicitário Washington Olivetto em que ele fala sobre isso de forma exemplar. Ele diz que há no mundo os ricos-ricos (que têm dinheiro e têm cultura), os pobres-ricos (que não têm dinheiro, mas são agitadores intelectuais, possuem antenas que captam boas e novas idéias) e os ricos-pobres, que são a pior espécie: têm dinheiro, mas não gastam um único tostão da sua fortuna em livrarias, museus ou galerias de arte, apenas torram em futilidades e propagam a ignorância e a grosseria.
Os ricos-ricos movimentam a economia gastando em cultura, educação e viagens, e com isso propagam o que conhecem e divulgam bons hábitos. Os pobres-ricos não têm saldo invejável no banco, mas são criativos, efervescentes, abertos. A riqueza destes dois grupos está na qualidade da informação que possuem, na sua curiosidade, na inteligência que cultivam e passam adiante. São estes dois grupos que fazem com que uma nação se desenvolva. Infelizmente, são os dois grupos menos representativos da sociedade brasileira. O que temos aqui, em maior número, é o grupo que Olivetto não mencionou, os pobres-pobres, que devido ao baixíssimo poder aquisitivo e quase inexistente acesso à cultura, infelizmente não ganham, não gastam, não aprendem e não ensinam: ficam à margem, feito zumbis.
E temos os ricos-pobres, que têm o bolso cheio e poderiam ajudar a fazer deste país um lugar que mereça ser chamado de civilizado, mas que nada: eles só propagam atraso, só propagam arrogância, só propagam sua pobreza de espírito.
Exemplos?
Vou começar por uma cena que testemunhei semana passada. Estava dirigindo quando o sinal fechou. Parei atrás de um Audi preto do ano. Carrão. Dentro, um sujeito de terno e gravata que, cheio de si, não teve dúvida: abriu o vidro automático, amassou uma embalagem de cigarro vazia e a jogou pela janela no meio da rua, como se o asfalto fosse uma lixeira pública.
O Audi é só um disfarce que ele pôde comprar, no fundo é um pobretão que só tem a oferecer sua miséria existencial. Os ricos-pobres não têm verniz, não têm sensibilidade, não têm alcance para ir além do óbvio. Só tem dinheiro. Os ricos-pobres pedem no restaurante o vinho mais caro e tratam o garçom com desdém, vestem-se de Prada e sentam com as pernas abertas, viajam para Paris e não sabem quem foi Degas ou Monet, possuem tevês de plasma em todos os aposentos da casa e só assistem a programas de auditório, mandam o filho pra Disney e nunca foram a uma reunião da escola. E, claro, dirigem um Audi e jogam lixo pela janela. Uma esmolinha pra eles, pelo amor de Deus.
O Brasil tem saída se deixar de ser preconceituoso com os rico-ricos (que ganham dinheiro honestamente e sabem que ele serve não só para proporcionar conforto, mas também para promover o conhecimento) e se valorizar os pobres-ricos, que são aqueles inúmeros indivíduos que fazem malabarismo para sobreviver, mas, por outro lado, são interessados em teatro, música, cinema, literatura, moda, esportes, gastronomia, tecnologia e, principalmente, interessados nos outros seres humanos, fazendo da sua cidade um lugar desafiante e empolgante.
É este o luxo de que precisamos, porque luxo é ter recursos para melhorar o mundo que nos coube, e recurso não é só money: é atitude e informação.
Marta Medeiros

domingo, 20 de maio de 2012

'Carta a Deus'



Miguel Esteves Cardoso - 'Carta a Deus'


"Deus,
Bem avisaste que eras um Deus invejoso e vingativo. Também sei que Job era um caso-limite: uma ameaça do que eras capaz. Nem eu nem a Maria João temos um milésimo da obediência e da resignação de Job. E castigaste-nos menos. Mas foi de mais.
De certeza absoluta que nos amamos mais um ao outro do que te amamos a Ti. Sabemos que isto não está certo. Mas foste Tu que nos fizeste assim. Admite: deste-nos liberdade de mais. Foste presunçoso: pensaste que Te escolheríamos sempre primeiro. Enganaste-Te. Quando inventaste o amor, esqueceste-Te de que seria mais popular entre os seres humanos do que entre os seres humanos e Tu. Por uma questão de tangibilidade. E, desculpa lá, de feitio. Tu, Deus, tens o pior das arrogâncias feminina e masculina. Achas que só existes Tu. Como Deus, até é capaz de ser verdade. Mas, para quereres ser um Deus real e humanamente amado, tens de aprender a ser um amor secundário. Sabemos que és Tu que mandas e acreditamos que há uma razão para tudo o que fazes, mesmo quando toda a gente se lixa, porque não nos deste cabeça para Te compreender. Esta deficiência foi uma decisão tua: não quiseste dar-nos a inteligência necessária.
Mas deste-nos cabeça suficiente para Te dizer, cara a cara, que nos preocupamos mais com os entes amados do que contigo.
Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida a quem pode ajudar. Faz o que só um Deus pode fazer: reduz-te à tua significância. Que é tão grande. "



Miguel Esteves Cardoso 


In Público, 3, Maio, 2012





PS:  Estamos todos contigo Miguel, para que a Maria João possa ficar curada e poderem ser ainda muito felizes!!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A verdadeira geração à rasca


Uma notícia pertinente, em que quase ninguém comentou, lamentavelmente...porquê? porque é verdade?Porque sou mãe e partilho do que aqui está escrito, e assino por baixo, a verdadeira geração à rasca, é a minha...que apenas sofre e paga!!Eu e todos os da minha geração, que tanto pugnámos por tudo o que hoje mais uma vez, pela mão da direita, se está a perder, é que somos a verdadeira geração à rasca
Este artigo, tanto quanto sei, foi escrito por uma professora da Faculdade de Letras, cujo nome desconheço. Tive acesso a ele, porque me disseram ter sido escrito por Mia Couto. Afinal, não foi. 


Geração à Rasca - A Nossa Culpa
"Um dia, isto tinha de acontecer. Existe uma geração à rasca? Existe mais do que uma! Certamente! Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos. Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor. Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada. Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou. Foi então que os pais ficaram à rasca. Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado. Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais. São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquer coisa phones ou pads, sempre de última geração. São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar! A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados. Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional. Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere. Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam. Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras. Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável. Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada. Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagógicamente sobre o desespero alheio. Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração? Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos! Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós). Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja!, que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida. E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!! Novos e velhos, todos estamos à rasca.

Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens. Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam. Haverá mais triste prova do nosso falhanço? "