segunda-feira, 28 de maio de 2012


Acabei de ler este texto de Marta Medeiros que sigo e leio, nas diferentes facetas em que escreve. E coloco-o aqui, porque ele traduz exactamente o que penso.

OS RICOS-POBRES

Anos atrás escrevi sobre um apresentador de televisão que ganhava um milhão de reais por mês e que em entrevista vangloriava-se de nunca ter lido um livro na vida. Classifiquei-o imediatamente como uma pessoa pobre.
Agora leio uma declaração do publicitário Washington Olivetto em que ele fala sobre isso de forma exemplar. Ele diz que há no mundo os ricos-ricos (que têm dinheiro e têm cultura), os pobres-ricos (que não têm dinheiro, mas são agitadores intelectuais, possuem antenas que captam boas e novas idéias) e os ricos-pobres, que são a pior espécie: têm dinheiro, mas não gastam um único tostão da sua fortuna em livrarias, museus ou galerias de arte, apenas torram em futilidades e propagam a ignorância e a grosseria.
Os ricos-ricos movimentam a economia gastando em cultura, educação e viagens, e com isso propagam o que conhecem e divulgam bons hábitos. Os pobres-ricos não têm saldo invejável no banco, mas são criativos, efervescentes, abertos. A riqueza destes dois grupos está na qualidade da informação que possuem, na sua curiosidade, na inteligência que cultivam e passam adiante. São estes dois grupos que fazem com que uma nação se desenvolva. Infelizmente, são os dois grupos menos representativos da sociedade brasileira. O que temos aqui, em maior número, é o grupo que Olivetto não mencionou, os pobres-pobres, que devido ao baixíssimo poder aquisitivo e quase inexistente acesso à cultura, infelizmente não ganham, não gastam, não aprendem e não ensinam: ficam à margem, feito zumbis.
E temos os ricos-pobres, que têm o bolso cheio e poderiam ajudar a fazer deste país um lugar que mereça ser chamado de civilizado, mas que nada: eles só propagam atraso, só propagam arrogância, só propagam sua pobreza de espírito.
Exemplos?
Vou começar por uma cena que testemunhei semana passada. Estava dirigindo quando o sinal fechou. Parei atrás de um Audi preto do ano. Carrão. Dentro, um sujeito de terno e gravata que, cheio de si, não teve dúvida: abriu o vidro automático, amassou uma embalagem de cigarro vazia e a jogou pela janela no meio da rua, como se o asfalto fosse uma lixeira pública.
O Audi é só um disfarce que ele pôde comprar, no fundo é um pobretão que só tem a oferecer sua miséria existencial. Os ricos-pobres não têm verniz, não têm sensibilidade, não têm alcance para ir além do óbvio. Só tem dinheiro. Os ricos-pobres pedem no restaurante o vinho mais caro e tratam o garçom com desdém, vestem-se de Prada e sentam com as pernas abertas, viajam para Paris e não sabem quem foi Degas ou Monet, possuem tevês de plasma em todos os aposentos da casa e só assistem a programas de auditório, mandam o filho pra Disney e nunca foram a uma reunião da escola. E, claro, dirigem um Audi e jogam lixo pela janela. Uma esmolinha pra eles, pelo amor de Deus.
O Brasil tem saída se deixar de ser preconceituoso com os rico-ricos (que ganham dinheiro honestamente e sabem que ele serve não só para proporcionar conforto, mas também para promover o conhecimento) e se valorizar os pobres-ricos, que são aqueles inúmeros indivíduos que fazem malabarismo para sobreviver, mas, por outro lado, são interessados em teatro, música, cinema, literatura, moda, esportes, gastronomia, tecnologia e, principalmente, interessados nos outros seres humanos, fazendo da sua cidade um lugar desafiante e empolgante.
É este o luxo de que precisamos, porque luxo é ter recursos para melhorar o mundo que nos coube, e recurso não é só money: é atitude e informação.
Marta Medeiros

domingo, 20 de maio de 2012

'Carta a Deus'



Miguel Esteves Cardoso - 'Carta a Deus'


"Deus,
Bem avisaste que eras um Deus invejoso e vingativo. Também sei que Job era um caso-limite: uma ameaça do que eras capaz. Nem eu nem a Maria João temos um milésimo da obediência e da resignação de Job. E castigaste-nos menos. Mas foi de mais.
De certeza absoluta que nos amamos mais um ao outro do que te amamos a Ti. Sabemos que isto não está certo. Mas foste Tu que nos fizeste assim. Admite: deste-nos liberdade de mais. Foste presunçoso: pensaste que Te escolheríamos sempre primeiro. Enganaste-Te. Quando inventaste o amor, esqueceste-Te de que seria mais popular entre os seres humanos do que entre os seres humanos e Tu. Por uma questão de tangibilidade. E, desculpa lá, de feitio. Tu, Deus, tens o pior das arrogâncias feminina e masculina. Achas que só existes Tu. Como Deus, até é capaz de ser verdade. Mas, para quereres ser um Deus real e humanamente amado, tens de aprender a ser um amor secundário. Sabemos que és Tu que mandas e acreditamos que há uma razão para tudo o que fazes, mesmo quando toda a gente se lixa, porque não nos deste cabeça para Te compreender. Esta deficiência foi uma decisão tua: não quiseste dar-nos a inteligência necessária.
Mas deste-nos cabeça suficiente para Te dizer, cara a cara, que nos preocupamos mais com os entes amados do que contigo.
Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida a quem pode ajudar. Faz o que só um Deus pode fazer: reduz-te à tua significância. Que é tão grande. "



Miguel Esteves Cardoso 


In Público, 3, Maio, 2012





PS:  Estamos todos contigo Miguel, para que a Maria João possa ficar curada e poderem ser ainda muito felizes!!